segunda-feira, 12 de maio de 2014

| Iris de Guimarães |

29 de abril de 2014





Olhos nos olhos




Ele vinha caminhando pelo muro do quintal, sozinho, em busca de alguma comida. Era ainda um filhote, de pelo rajado de cinza e branco. Caminhava com a leveza típica dos gatos, mesmo trazendo no corpo, acima da pata esquerda, um grave ferimento que só poderia ter sido feito pelo bicho mais cruel e feroz: o homem.

A tarde passou-se, na tentativa de o capturarmos para cuidar dos seus ferimentos. Não foi tarefa fácil. O filhote de gato conhecia os humanos e sua capacidade de maltratar e ferir; e talvez por isso ele tenha fugido de nós. Não conseguimos. Mas quando veio a noite o encontramos escondido entre as plantas do quintal, a espreitar pela porta entreaberta o pequeno prato de ração que pusemos para ele. Vi a luz natural dos seus olhos, iluminados pela luz artificial da cozinha e conseguimos pegá-lo sob arranhões e mordidas. O levamos à casa do veterinário que nos confirmou que aquela ferida, no corpo daquele pequeno gatinho, havia sido feita à faca.

O pequeno filhote foi operado, recebeu curativos, injeções para dor e até aceitou alguns dos afagos que lhe demos. Ele era esquivo, bravo, amedrontado, mas depois de o colocarmos aconchegado entre trapos de pano, apagarmos as luzes e silenciarmos, o gatinho adormeceu. Então vi que dois olhos se acenderam do outro lado da porta de vidro do quintal. Era uma gata adulta. Era a sua mãe. Havia no seu silêncio de animal uma dor materna e um tom de ameaça e proteção. E eu, ali, tentando lhe dizer em silêncio, que sim, que eu concordava com tudo que aquele silêncio, dentro dos seus olhos de mãe, parecia dizer. Não sei se ela me entendeu, mas eu tentei como pude, pelos meus olhos, lhe demonstrar minha tristeza e vergonha pelas tantas covardias cometidas por tantos seres de minha espécie.